Reflexões do Fundo do Copo – A terceira onda da importação do vinho, 2010!
Não me peça dados precisos para o que vou dizer, pois espertamente criei este espaço para especulações, coisa que não precisa ser defendida com dados muito precisos. São reflexões feitas desde o fundo do copo, da taça, da garrafa, da adega. Mas adianto que tudo que direi me parece tão verdadeiro, tão historicamente confiável que me atrevo a dividir com vocês.
Vieram os vinhos com as imigrações. Vieram, portanto, para atender uma demanda que passaria de pai para filho, de mãe para filha, de tio para caiçara, porque sempre, nas colônias que se formaram, desde os primórdios, teve alguém que se engraçou com uma nativa, uma escrava liberta, uma vizinha de alguma colônia das redondezas. Porque os portugueses, nossa primeira colônia, diz a lenda só veio porque pode trazer sua Pêra Manca e Vinho do Porto nos baús, seguidos, nos séculos posteriores, pelos vinhos verdes tintos e brancos, pelos Dão e Garrafeiras que freqüentaram as empoeiradas e ensolaradas prateleiras das padarias. Porque os italianos só se dispuseram a vir para cá se viesse com eles um belo estoque de Chianti de cestinha, de Valpolicella, de Corvo di Salaparuta, de Marsala. Vieram os espanhóis com as suas amostras riojianas e penedes, com seus xerez e brandis, sempre muito bem avaliados.
Em São Paulo do Pós-Guerra, alguns restaurantes faziam as vezes de importadores diretos, mas quase sempre quem se ocupava deste negócio, eram as empresas que viviam da importação de alimentos em geral. Era vinho de gueto, de pouca variedade e quase sempre de pouca qualidade. E dificilmente um vinho saia de um gueto e ia satisfazer o outro, a não ser quando descobriam similaridade. Portugueses bebiam os da terrinha, italianos os oriundi e os espanhóis, igual. É preciso dizer que esta coisa do vinho do gueto era superado pelos vinhos franceses, champanhas, Bordeaux e Borgonhas, que transitavam por igual entre as mesas mais abastadas, desta ou daquela colônia. Eram ursos em meio a ovelhas, para usar a imagem do Anjo Exterminador do Buñuel. Estes estavam acima do bem e do mal, se bem que para os do gueto, eram sempre comparados aos grandes de cada colônia, que orgulhosa defendia seus Barolo, Veja Sicilia e Barca Velha.
Compunham a carga, vinho junto com o queijo parmesão, com o azeite, entre as peças de bacalhau, de embutidos, dividindo espaço com os enlatados. Não havia especialidade na importação do vinho, que nos digam as Casa Prata, Chiapetta, Rei do Bacalhau, La Pastina, Gomes Carreira, Gomes Sá, Casa Ricardo, Aurora, Casa Flora e outras tantas que atendiam diretamente a demanda. Os volumes eram muito pequenos, comparado com a circulação de hoje. Para se ter uma idéia, a grande Yllera ( http://www.grupoyllera.com ), que produz mais de um milhão de garrafas por alguns de seus 30 rótulos, estava entre nós, importada diretamente pelo restaurante Don Curro, que traz apenas o suficiente para atender a demanda de seus clientes. Anos depois, restaurantes como o Massimo e o Supra, passaram seus anos de glória importando poucos vinhos de nicho, vinhos muito especiais. Mas isso já é história do segundo capítulo, não do primeiro, este que acabamos de acabar.
Veio então o boom do vinho chique, aquele que trocou a quantidade pela qualidade e mudou o panorama do vinho no mundo. Anos 80? Anos das degustações frenéticas nos EUA, na Inglaterra, no Japão e na Alemanha. Anos que transformaram o vinho em produto de leilão. Pois até lá, o vinho mais caro tinha sido um Bordeaux, vendido a US$500,00. Depois de lá, o preço dos vinhos foram à estratosfera e todo mundo ganhou bastante com isso… Menos o coitado do consumidor. As importadoras brasileiras pularam para patamares de lucratividade muitas vezes maiores, afastando-se dos enlatados, dos secos e dos molhados. Ao mesmo tempo – mostrando que a era do consumo dos guetos tinha sido superada com o fim dos próprios guetos de colônias que mais e mais se confundiam na sociedade urbana que se formava, com a presença importante de outras vertentes culturais, como os árabes, judeus, japoneses e tantos outros cuja origem não se confundia com a produção vinícola – o brasileiro que nasceu depois dos anos 50, chegava à sua idade adulta pronto para trocar a Coca-Cola pelo atraente vinho de garrafa azul, vindo diretamente da Alemanha para a taça de quem queria um vinho descolorido e açucarado.
De um lado o luxo, do outro a popularização do vinho (o lixo?), este produto que insiste em se chamar vinho, não importa se custa na gôndola 1 ou 1000. Foram os anos de ouro da Mistral, Expand, WorlWine, Carrefour, Pão de Açúcar. Foram os anos dos vinhos de nicho, onde os casos citados do Massimo e muito anos depois do Supra se acomodam, mas também os da Decanter, da Peninsula, da Adega Alentejana, da Hannover. São os anos da passagem das simples cantinas italianas para os restaurantes de grande serviço, com muita coisa tercerizada. Anos que elevaram à condição de profissão especializada, o servidor do vinho na taça do cliente, profissão cujo nome bizarro – sommelier (que quer dizer em francês literalmente o despenseiro, o homem que sabe o que tem na casa, o responsável pelas compras da despensa) – é vestido de estranha nobreza, que pretende justificar, em parte, os custos astronômicos dos vinhos em carta nos restaurantes. Do lado do luxo, uma quantidade absurda de vinhos que custam ao consumidor mais de R$200,00. Do lado da popularização, 15 mil rótulos vindos, na grande maioria, dos vizinhos protegidos pelas leis do Mercosul, a um preço de gôndola a partir de R$8, preço até então exclusivo aos vinhos simples de garrafão.
Chegamos então aos dias atuais, onde a Queda Tendencial da Taxa de Lucro se faz ver com clareza. Com tanto vinho era impossível manter aquele Império sem fronteiras. Por isso a fratura exposta de tantos bem sucedidos, empresas de grande porte como a Expand, que chegou a ter em seus catálogos 4 mil rótulos de importação exclusiva. Por isso a reformulação de empresas do Top da importação, como a Mistral que, para manter a pose de fornecedora de produtos vendidos apenas nas lojas especializadas, abriu uma Vinci, que nada mais é – além dos argumentos de aparência – uma empresa que tem uma porta aberta para o canal Supermercados. Diga-se de passagem, os supermercados não ficaram a ver a banda passar. Notaram a importância do mercado que se abria e se aparelharam tecnicamente para vender vinho. Com isso, é possível ter o vinho de qualidade nos grandes canais de circulação, coisa que era inviável até poucos anos atrás.
Abre-se um novo momento. Acho que nós consumidores vamos ganhar com isso.
Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.
Adorei…
E realmente quem vai sair ganhando é nós os consumidores, que podemos escolher onde comprar e não temos mais de ficar presos apenas a poucos ambientes. Detalhe o consumidor cada dia estar mais informado.
Otimo texto. Como sempre.
“Chegamos então aos dias atuais, onde a Queda Tendencial da Taxa de Lucro se faz ver com clareza”.
Sim sim. E ha uma razao simples para isso…. tcham tcham tcham: Economia classica gente. Onde ha as menores barreiras de entrada os lucros tendem a zero. E o contrario he verdadeiro (maiores barreiras de entrada, maiores lucros). Hoje ha zilhoes de vinicolas por ai. Virou status para muitos, ultima chance de ganhar com agricultura para outros… alem do que qualquer um hoje abre uma importadora.
Outra coisa rapidinho: comparem, se possivel p/ voces, o nivel dos representantes de vinhos e bebidas com os similiares americanos. Facam os mesmos com os executivos. Vejam o nivel educacional de sommeliers aqui e la. O pessoal de loja entao (ate os donos, alguns se julgam tao sabidos…)? O tanto que um dude em qualquer grande/media loja de vinhos nos USA sabe comparado com o pessoal daqui? OK, alguns vao dizer que um ganha muito mais que outro, mas vejam o tanto que um estudou (ate college no minimo) enquanto que o outro nasceu na Paraiba e mal ”ginasio” tem (nao he culpa dele)…
Muitas outras importadoras entrarao no mercado do vinho ate muitos ficarem de fora da danca. Ai o mercado se volta contra o consumidor novamente (precos sobem). Vamos aproveitar a onda.
Reparo como muitos importadores/lojas ainda nao sabem comprar. Ou compram a mais ou compram sem protecao cambial (hello 2008!!). Falta gestao ao mercado.
Educacao e proteina he o que todo pais precisa.
Bom fim de semana.
Legal, Plow King, pelo jeitão você sabe mais do que eu do que estamos falando ao comentar Queda Tendencial de Taxa de Lucro, não é? Falamos sobre o livro 3 do O Capital de Karl Marx, que analisa a mecânica que rege as mercadorias quando em seu estado de concorrência. O estudioso analisa o que nos é contemporâneo, mesmo passados mais de 150 anos. nada-se de braçada quando a concorrência inexiste e a demanda sustenta os preços sugeridos.
Respondi a um velho amigo, algo que socializo:
De fato, uma coisa é vc formar um cartel que estabelece um patamar de ganho. Uma segunda coisa é você atingir um custo menor por conta da sua atividade muito mais importante. Por exemplo, o que importa a Casino para o mundo inteiro barateia aquele vinho que vem para o Brasil, não é?
No entanto, não abaixa o preço, ao contrário aumenta o lucro, pois o que se compra naquela determinada categoria permite, visto que a concorrência não tem condições tão boas de compra.
Agora, imagine que estamos chegando num momento onde é possível servir os grandes canais (portanto grandes volumes) e fazer chegar aquela taxa de lucro menor ao consumidor final, em alguma medida.
A maioria das importadoras quadruplicam o custo da importação ( preço ao produtor + custos de transporte + custos de seguro + custos de estocagem + impostos)
multiplicado por fator 2, o que dá 200% de lucro caso o consumidor aceite o preço de tabela cheia.
Mas o vinho deixou de ser luxo e passou a ser comodity na grande maioria das vezes. Portanto, até pela concorrência, tornou-se improvável uma lucratividade desta, ao menos para 80%, 90% dos vinhos importados. A tendência – como Marx teve oportunidade de analisar no livro 3 do O Capital – é de Queda Tendencial da Taxa de Lucro (eu, como li tudo isso em italiano, ainda morando em Roma e estudando no Istituto Gramsci da Pzza Dei Fiori, conheci este estudo dito Caduta tendenziale della tassa del profito).
Tanti auguri