Reflexões do Fundo do Copo – Domestica-se Vinho Selvagem, Tannat e Outras Cepas
Ao pensar nesta rápida viagem que minha mulher e eu fizemos para Montevideo e Buenos Aires, não pude deixar de lembrar da Roberta Bündschen, que um dia entrou na minha sala com seu passo de modelo, dizendo que adorava a carmenère. A Roberta, na época uma eficiente estagiária de atendimento da agência de propaganda por onde militei uns tantos anos, tinha este apelido porque parecia estar sempre desfilando em vez de andar. Atendia um pouco de tudo, inclusive a conta da Interfood e estava se iniciando em vinhos, quando veio com essa – Adoro Carmenère!
Espero, Roberta, que passado alguns anos você continue mantendo seus amores desde que sem fidelidade canina a eles, porque o mundo do vinho e muito mais rico do que isso, só uma uva entre tantas não dá, não precisa, não carece. Tentamos desesperadamente nos segurar na ponte criada por uma certeza interior, uma coisa que não deixa a gente cair nos vazios da diversidade sem fim que a realidade nos apresenta. E a certeza, o gosto já constituído, acaba nada mais sendo que o fator limitador de novas experiências, quem sabe tão surpreendentemente gratificantes como a que nos proporcionou aquela outra que nos serve de guia. Gratificações que ocupam lugares diferentes no cérebro da gente, diga-se, mas que podem ativar sensações de intensidade igual.
Alguém, lá pelos lados da racional Alemanha, inventou esta coisa de oferecer ao bebedor de vinho a uva responsável pelo resultado embalado dentro de uma garrafa de vinho. Por exemplo, vinhos cujo rótulo apresenta estampado “Carmenère” dá uma sensação de conhecimento maior do que, por exemplo “Chianti”, que nada quer dizer, a não ser o nome de uma denominação de origem, ou Barolo. Simplificou a escolha do consumidor com isso, mas banalizou – todos sabemos – informou por baixo, como se a uva, coitada, fosse responsável por tudo que um vinho pode dizer em termos de sensações. É que assim como a racionalidade alemã nunca foi tão racional, basta ver sua mitologia extremamente rica em mistérios, esta história de ficar informando sobre os varietais sempre escondeu realidades que ficaram muito aquém deste simples conhecimento. Pois um vinho de 3 euros produzido com as uvas Cabernet Franc e Merlot, mesmo que fruto do terroir genérico Bordeaux, não expressa tudo que estas uvas podem dar, vide um ‘Cheval Blanc” que a galope pode nos mostrar.
O Uruguai já foi a terra daquele vinho de macho, cavalo indomável, tannat, uma uva que caracteriza um vinho perdido perto dos Pirineus do lado francês, uma certa Madiran, mais uma das quase infinitas denominações controladas que existem na França. Ela trilha um caminho ascende, como outras tantas uvas que abrem espaço na constelação internacional, cansada de guerra das cabernet sauvignon e chardonnay da vida. Pois não é que aplicaram o mesmo sedativo a esta uva, o mesmo que deram para o malbec na Argentina, o mesmo que aplicam ao Primitivo e ao Sangiovese na Itália, o mesmo que está trazendo a Baga portuguesa para o mundo moderno?
O sedativo é à base de micro-oxigenação que está conquistando as Robertas Bündchen, eu e você, principalmente quando a personalidade da uva não é afogada por um excesso de madeira, que tudo pode dominar… Fui mais longe, fui atrás até do vinho vendido em caixinhas tetrapack, que é o jeito que os uruguaios tomam seu vinho de mesa. Fui a Ariano e a Gimenez Mendez ver como duas matriarcas do bem, como a Marta Mendez Parodi e Elisabeth Ariano chegam a excelência com seus vinhos super premiados, tanto quanto os da Bouza. Reencontrei o Puzle, um vinho que os ingleses estão encantados, apesar de ter em seus intestinos tantas variedades de uva que nenhum kantiano puro deveria degustar!
Fui mais longe ainda. Peguei o Buquebus, atravessei aquele rio da Prata sem fim para me encontrar com uma uva perdida nos rincões do Piemonte da Itália e dos desertos mendozinos da Argentina, a Bonarda, que muito bem trabalhada vem dando o que falar fora de seus lugares de origem. Dá vontade de simples dizer: Roberta, adore todas as uvas ou nenhuma. Roberta, goste do que o homem tem realizado com as uvas que a terra lhe dá.
Venho batalhando, em termos de marketing, para bater o martelo numa uva que possa ser tão importante para o Brasil como a malbec foi para a Argentina, a Tannat tem sido para o Uruguai, a Shiraz foi para a Austrália e todo o resto. Mas acho que este papo está ficando sem sentido. Os consumidores estão percebendo que este marketing está ficando superado demais, que a uva identificadora de região já não é mais a mais importante, a que melhor define aquela terra, por mais que não se faça melhor carmenère que o Chile, melhor pinotage que a África do Sul, ao menos até agora.
O Tannat e a Bonarda estão totalmente dominadas, domadas para conquistar o mundo dos vinhos de classe, não precisam mais contentar-se com o espaço reservado aos vinhos de mesa.
Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.