Mais uma vez a confraria Saca Rolha se reuniu para desfrutar amizade, alegria e vinhos. Desta feita elevamos o patamar e por decisão unânime decidimos juntar alguns bons borgonhas e mais, só rótulos 1er Cru! A Raquel, nossa porta voz , dá aqui seu testemunho do evento porém antes deixem-me dar só uma interessante informação sobre a região. Recentemente vi uma lista dos 50 vinhos mais caros do mundo e dos top 10, oito, repito, oito são da Borgonha inclusive os primeiros dois! Vamos ao relato da Raquel:
A Borgonha divide com Bordeaux a notabilidade de região produtora de vinhos na França. Se por um lado, Bordeaux imprime seu caráter austero e tradicionalista, personificado através de seus châteauxs e suas grandes propriedades, a Borgonha se mostra principalmente pelas características agrícolas, com pequenas propriedades de gestão quase sempre familiar. Para seus produtores, a importância do “terroir” é o que diferencia e dá identidade ao vinho, sendo seus vinhos produzidos com apenas duas castas, Pinot Noir e Chardonnay, em suas principais sub-regiões de; Chablis, Cotes de Beaune e Cotes de Nuit sendo que na Cotes Chalonnaise também são autorizadas as brancas Pinot Blanc, Pinot Gris e Aligoté assim como a tinta Gamay que reina quase que absoluta nas regiões sul de Maconnais e Beaujolais.
Quando surgiu a ideia de fazermos o encontro da confraria só com vinhos da Borgonha, a primeira preocupação foi o custo. Sim, são vinhos caros e sempre assustam os que querem se aventurar por essas pequenas parcelas de terra, que os “bourguignon” chamam de “Crú” e que tratam como se fossem seu solo sagrado! Desde o Século XI, os monges da Abadia de Cluny começaram a estudar e desenvolver a vitivinicultura nessa região, baseando-se principalmente na influência que as diferenças do solo exerciam na qualidade das uvas. Até hoje, esses estudos são aprimorados e mapeados minuciosamente, mostrando cada vez mais as diferenças geológicas, e o respeito pela excelência de cada terroir, principal fator que qualifica a produção desses vinhos. Cada “Crú” é dividido em “Climats” , lotes de vinhas, que por sua vez são divididos em “Lieu-dit” , que são vinhas com uma designação própria.
Além disso, adotam uma classificação de qualidade com regras rígidas, onde se leva em consideração o tipo de solo, drenagem, insolação, densidade de pés por ha, rendimento por pés, etc….. que se divide entre os Comunais ou Villages, que é a maior parte da produção. Premier Crú (apenas 10%) e Grand Crú (apenas 1,7%). Por aí, já dá para entender um pouco o porque do altíssimo preço! A produção além de artesanal, é muito pequena. Só para se ter uma ideia, as vinhas do famoso “Romanée-Conti” , limitam-se a uma área de 1,62ha (16.200m2).
É nessa escarpa, resultante de uma anomalia geológica, que mais parece uma colcha de retalhos que vamos nos divertir! E como diversão pouca é bobagem, nossa confraria munida de todo hedonismo que tem direito, escolheu degustar apenas vinhos de qualidade Premier Crú.
Como sempre, começamos com um espumante e desta feita da região:
Crémant de Bourgogne François Labet – elaborado pelo método tradicional com uvas Chardonnay. Cor amarelo palha, bem clarinho. Delicado e seco na boca. Tem a mineralidade típica do solo dessa região.
Próximo a Auxerre, está a região de Chablis. Possui um tipo de solo único, que lhe caracteriza e imprime em seus vinhos, uma identidade inimitável. Seu solo Kimmeridgiano do período jurássico (150 milhões de anos atrás) é formado de conchas pré históricas. Dessa região provamos o Chablis Montée de Tonnerre 1er Cru 2009 – do produtor Billaud-Simon. Muito fresco e aromático. Boa acidez, bom corpo e longa persistência. Um vinho com alma marinha que combina com um final de tarde de verão na praia. Se tiver um prato de ostras frescas por perto, melhor ainda!!
Na parte central da Borgonha, próximo a vila de Chalon-sur-Saône, está a Côte Chalonnaise. De lá, veio o Le Clos du Roy Mercurey 1er Cru 2009 – produzido pela Domaine Faiveley. Bem clarinho na taça. Aromas frescos florais e de especiarias. Na boca mostrou-se bem diferente da expectativa incitada pelo nariz. Mostrou-se mais robusto e duro, com as mesmas especiarias, porém de maneira mais pungente. Frutas vermelhas compotadas dividiam sua doçura com a acidez, dando um equilíbrio no todo. Um vinho inquieto como a juventude. Acho que se for lhe dado um tempo de guarda deverá ter grande evolução.
Foi chegada a hora da surpresa da noite. Estava previsto um Pinot Noir intruso para ser degustado às cegas. A primeira impressão, ainda na taça , era de um vinho mais turvo, sem o brilho do anterior. No nariz mostrava aromas suaves, vegetais, florais e animais. Em boca era bem frutado (frutos vermelhos maduros), algo lembrando vermute. Taninos macios , bom extrato e acidez bem colocada. Os que apostaram na América do sul acertaram : Este veio do Chile – Little Quino 2012 – Elaborado por William Févre, importante produtor de Chablis. Evoluiu bem na taça, apesar de tratar-se de um vinho jovem.
Voltando à Borgonha, mais precisamente ao norte de Beaune, está a vila (ou comuna) de Savigny-les-Beaune. Tomamos o Savigny-les-Beaune “La Dominode” 1er Cru 2008 do Domaine Pavelot. A primeira impressão desse vinho foi um enorme frescor nos aromas. Algo lembrando mentol, lavanda e sensação gelada. Sua cor, rubi muito vibrante e luminosa. Boa acidez de frutinhas de bosque (framboesas, cerejas) , taninos suaves e corpo médio , mas com persistência. Com o tempo os aromas e sabores foram evoluindo com muita complexidade. Podia-se sentir um pouco de couro, terra molhada e um fundo floral. Um vinho que estava pronto!
Na sequência do nosso tour enófilo, caminhamos para o sul de Beaune, onde encontramos a vila de Volnay. O escolhido foi o Volnay 1er Cru-Marquis d’Angeville 2008. Pudemos notar que nesse caso não foi especificado no rótulo o nome do 1er cru de onde se originou suas uvas. Depois pesquisando sua ficha técnica descobri que nesse caso ele é feito com uvas de três vinhedos diferentes. Ou seja, um assemblage de três “climats”,1er Cru. Assim como o anterior, o primeiro ataque dos Borgonhas é sempre muito fresco e perfumado. É como se nos convidassem a um encontro elegante e sedutor. Poderia ficar divagando horas à respeito das sensações desse vinho! Mas isso foi a minha experiência e evidentemente cada um tem a sua.
O final do passeio foi em Côtes de Nuit , mais precisamente em Gevrey-Chambertin tendo degustado o Gevrey-Chambertin “Le Champeaux” 1er Cru 2005 de Olivier Guyot, um produtor biodinâmico. A primeira coisa que me chamou atenção nesse vinho foi o rótulo. Apesar de muitos desprezarem essa informação, a mim ela diz muito, afinal é a roupagem que o produtor dá ao seu produto. Garanto que alguém pensou muito na escolha de uma imagem, que conseguisse transmitir ao menos no primeiro contato, um pouco daquele conteúdo. E nesse caso, a imagem de um camponês , com seu cavalo, trabalhando a terra, mostra bem a importância que a agricultura tem na região da Borgonha. É um rótulo simples, mas elegante, onde em primeiro lugar vem o nome do produtor, depois o ano da colheita, e em seguida o Cru e o Climat. Depois das apresentações, vamos às taças! Logo já podíamos notar uma cor mais acobreada por tratar-se de um vinho mais evoluído (2005). Nariz discreto, mas dando dicas que está tudo ali. Aquele frescor mineral, quase um vento gelado, trazendo depois um floral, muitas frutas, ervas do campo, terra úmida, etc…….No primeiro gole, toma conta da boca uma sensação aveludada que aos poucos, vai confirmando todas aquelas dicas preliminares. Um vinho redondo, sem arestas que chamem a sua atenção a um detalhe especifico. É tudo junto e misturado e loooongo. Equilíbrio perfeito.
Os vinhos da Borgonha, principalmente os de Pinot Noir, encontram a perfeita harmonia com o solo e clima. Sua exuberância e plenitude é copiada no mundo todo. Os que buscam um “estilo bourguignon”, em outras terras, lutam por algo que não existe nem lá. A palavra estilo só pode ser usada quando se faz o mesmo vinho todo ano e na Borgonha estão interessados no caráter de cada terroir. No vinhedo, as uvas recebem o mínimo de intervenção possível. E foi nesse pedacinho de terra, ela que é tão sensível ao clima, encontrou seu perfeito habitat. Gosta do frio, que proporciona amadurecimento mais lento dando-lhe tempo para desenvolver todo seu potencial. Por outro lado, sua casca fina, precisa de muito sol, pois o frio continuado a deixa exposta a fungos e outras doenças. Ou seja, busca por locais onde haja grande amplitude térmica. Dizem que a Pinot Noir é uma uva feminina. Delicada e melindrosa, ela dá trabalho a quem quer cultivá-la. Exige obstinação, perseverança e principalmente entendimento da natureza. Mas estando no lugar certo, e sendo muito bem cuidada, devolve com alegria tudo que recebeu.
Para finalizar uso as sábias palavras de Carlos Drummond de Andrade que um dia disse: “Os homens distinguem-se pelo que fazem, as mulheres pelo que levam os homens a fazer.”