Reflexões do Fundo do Copo – Grande Mito, Grande Decepção!
Mais um delicioso texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Coluna do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias.
Descobri, na mesa, que meu comportamento tende a se alterar perante um mito. Atendi ao convite do amigo para jantar, levando um Haut Smith 92 debaixo do braço, meu passe para contrabalançar a presença anunciada de um La Lagune Grand Cru 96, o astro-mor da noite, Cinquième Grand Cru Classé. Todos estávamos lá para reverenciá-lo, inclusive a galinha d’Angola, escolhida a dedo para servir de contraponto sólido ao líquido, que deveria ser divino, por definição. Ele era o único sujeito da sala, nós, os provadores, modestos veículos de seus predicados. Nenhum de nós já o havíamos provado e a hora seria aquela. Eu, na humilde condição de um ser sempre meio fora de lugar (filósofo demais para ser publicitário, publicitário demais para ser militante de esquerda, militante demais para…), não quis dar vexame, principalmente porque estava cercado de acadêmicos da mesa, nobre estirpe que se forma e se desfaz desde os tempos de Robespierre.
Cumpri com perfeição e decoro todos os salamaleques rituais exigidos – cheirei a rolha, reparei no seu leve vazamento, fiz o líquido circular pelas paredes baixas do copo de formato apropriado, medi sua coloração contra o branco da toalha, dei um gole mínimo, concentrei-me no que fazia e não abri a boca, a não ser para provar. A esta altura, servido ao lado de um Montesquieu 1999, meu réles Haut Smith já tinha sido dragado como mero cover de aquecimento e, para falar a verdade, nem o papel secundário lhe coube bem, visto que apresentou aquele vergonhoso gosto de pêlo de raposa, que determinados vinhos passam a carregar quando envelhecem mal; um bom rótulo, um cru intermediário, um vinho com pouco para mostrar… Pouco ou nada.
O que houve com o astro? Afinal não é todo dia que um Grand Cru Classé chega até nós. Seus taninos bordoleses se fizeram presentes na proporção de 55% Cabernet Sauvignon, 20% Merlot, 15% Cabernet Franc e10% Petit Verdot. Pensei comigo mesmo: são os 10% do Petit Verdot, maldita uva autóctone invejosa do sucesso que suas irmãs andam fazendo mundo afora… Não, ele deveria ser salvaguardado. Alguém merecia pagar o pato, a galinha, por exemplo. Ela decididamente não rendeu, civilizada demais para a ocasião, que exigia o seu lado mais caça, mais forte de gosto, mais selvagem. Parecia apenas uma bela e delicada ave destrinchada, impotente para contracenar com alguém de qualidades tão poderosas. Fulano preferiu defender a galinha e centrar o ataque nos queijos e nos vinhos brancos da entrada, muito saborosos demais; outros optaram por criticar nossa inépcia ao deixar faltar oxigenação necessária para que o grande e nobre francês nos desse tudo que tinha para dar. Todos foram dormir com uma sensação de frustração na boca.
Coitados de nós. Um bando de mitômanos procurando firmar às apalpadelas os velhos paradigmas, enquanto novos são criados aos borbotões pela mídia especializada norte-americana e pelos produtores do novo mundo. Sempre pretendo ser espontâneo quando manda o paladar, porque nada menos analítico, nada menos mediatizado pelo conhecimento intelectual do que o “gostei…hummm, não gostei”. O intelectual vem depois à moda do Gramsci, teorizando os predicados depois de tê-los conhecido na prática. Não sabemos mais qual é o principal objeto do desejo engarrafado. Será ainda o Romanée Conti, o Pétrus, o Lafitte. Ou é agora um australiano, um chileno, um californiano? A decadência de um mito faz isso com a gente, tira o rumo. Não liga não.