Reflexões do Fundo do Copo – o gosto, o desgosto e o degustar.
Quisera poder comparar vinhos com coisas diferentes, para não ter que por em xeque minhas certezas neste quesito. Quisera ser fiel ao meu gosto já determinado, para que pudesse contar com uma sólida base de certezas que me permitissem construir minha adega até o fim da minha vida. Deste ponto de vista, feliz era aquele saloio que vivia em seu canto, consumindo os produtos da região, jamais entrando em contato com o desconhecido. Urbano e mundano que sou, a informação de que existem muitos milhares de vinhos no mercado que eu não conheço me deixa extremamente desconfiado das minhas certezas.
Quem sabe entre os desconhecidos exista o vinho do dia-a-dia definitivo. Quem sabe entre eles, exista um vinho igualzinho aquele que gostei tanto, mas muito mais barato. Quem sabe entre eles haja sabores inesquecíveis, surpreendentes, maravilhosos, que não posso me permitir morrer antes de conhecer. Vinho é tão bom quanto o prazer que ele pode me dar, simples assim. Até porque ele não é bom em si, enquanto fenômeno que reúne condições dadas e trabalho humano. Ele é bom, na medida em que atende minha expectativa de prazer. Bom porque melhor de outros similares que já tomei, bom porque tem uma boa relação entre qualidade e preço. Bom porque me deu prestígio junto aos meus amigos, já que eles gostaram muito da minha escolha. Bom porque é diferente dos que conheço.
Mas qual é a minha verdadeira expectativa? Ser fiel aos vinhos que já gosto, defender com unhas e dentes meu conhecimento adquirido? Nietzsche nos dá uma bela pista a respeito das certezas que parecem definitivas, herdadas que são das gerações anteriores. No livro O Connaisseur Acidental de Lawrence Osborne, traduzido e publicado pela editora Instrínseca, no Rio de Janeiro, 2004, encontra-se a seguinte citação imperativa, como costumam ser os resultados das pesquisas intelectuais deste herói do pensamento ocidental – “A vida é uma Disputa entre o gosto e degustação”.
A simples citação, mesmo que fora de qualquer contexto, põe em moto continuo o conflito entre o gosto adquirido e a compulsão por enfrentá-lo e colocá-lo em xeque. Pois aqui, o gosto é um dado comprovado por práticas que o consolidaram – Gosto da comida da minha mãe, não porque ela ponha duas folhas de louro no feijão. Gosto porque aprendi a gostar assim, através de tanto tempo de experiência, de anos a fio comendo feijão com aquele gosto. Ao me tornar cidadão do mundo, saio por aí experimentando feijões e fico furioso quando constato que há gente por aí que ousa fazer feijão diferente do da minha mãe, quando, para mim, é evidente que aquele é o melhor que o mundo pode criar!
Já o degustar é o colocar-se numa posição de questionar o feijão da minha mãe. Experimento outros feijões porque estou aberto a outros gostos desconhecidos. Experimento para confirmar as minhas preferências, experimento porque não temo colocá-las em xeque, seja porque estou absolutamente convencido da primazia da minha escolha, seja porque estou disposto a trocá-la. Ou seja, é assim, mais para comprovar o meu gosto consolidado e menos para contestá-lo, que saio por aí abrindo garrafas de vinhos de todo tipo.
Procuro tateando, determinando horizontes. Eu que não gosto de vinhos de sobremesa, que prefiro vinhos gastronômicos com acidez presente, não fico por ai experimentando tudo que a late harvest que me propõem… Não fico procurando vinhos cheios de taninos de madeira americana, que também não gosto muito. Enquanto tive uma dificuldade inicial de gostar de vinhos com este acento novomundista – principalmente no que tange à exigência de maciez, mesmo em vinhos de mesa – aceito com naturalidade vinhos com cheiro herbáceo, com pouca coloração, com pouca gradação alcoólica. Portanto, a procura começa por vinhos quase iguais aos que já assimilei, o que confirma, mas não radicaliza, a tensão entre o gosto e o degustar. Primeiro procuro vinhos com características extremamente próximas as que já fazem parte do meu gosto.
Balela procurar extrema objetividade no vinho em si, pois – como acaba de nos dar a chave o filósofo bigodudo alemão, que tanto influenciou a gente como o Freud – a questão do gosto se encontra em boa parte fora da garrafa, fora do terroir, fora da cepa. A questão está mais na nossa capacidade de enfrentar o novo. Evidentemente, o vinho tem características objetivas que o definem, características de toda ordem que podem ser divididos em conjuntos como as características geológicas, como a composição do solo e seus alimentos; as geográficas, como o clima, índice pluviométrico, variação térmica e insolação; as técnicas como os princípios enológicos a que se submete, como o uso de micro-oxigenação e o carvalho americano; a princípios de mercado, como as opções de cepas compatíveis com determinado solo; e até as sociológicas como a que tradição agrícola está inserida, quem planta e consome.
Sim, é possível estabelecer bases para este critério de valor, bases concretas, a partir de pré-definições que envolvem defeitos reconhecidos como tal, tipicidade, características organolépticas definidas e obrigatórias. Por exemplo, uma espumante feito pelo método de Champagne tem a longevidade de sua borbulha como um critério de qualidade reconhecido. Pode ter o gosto que quiser, mas ninguém lhe nega que a longevidade da borbulha é uma característica objetiva que permite uma avaliação de qualidade. Há ainda um outro fator tão objetivo quanto estes para a formação de determinado gosto: as características físicas do próprio degustador. Em teste aplicado na faculdade do vinho de Bordeaux 2, em 2006, constatou-se que num gradiente de 10 níveis, nenhum degustador profissional era capaz de reagir com a mesma intensidade à moléculas odoríficas diferente presentes no vinho. Os que se mostraram mais sensíveis a uma determinada molécula, invariavelmente eram menos sensíveis a outras. Concluiu-se então, que não há degustador capaz de treinar sua eficiência para todos os milhares de resultados possíveis que se apresenta numa taça de vinho.
Além disso, vive, no interior de cada degustador, outras tantas características subjetivas, como as lembranças ou referências, boas ou más, associados a determinado perfume, determinada denominação de origem etc. que influenciam obrigatoriamente o veredicto do degustador, seja ele mais ou menos treinado, não importa. Tudo reunido me permito uma reflexão em direção à humildade perante o vinho: Profissionais e amadores, não há forma de imperar sobre o gosto, o desgosto e a degustação dos outros.
Genial texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias
Caro Breno, a sacada da crônica é matadora! Tenho lido seus escritos por aqui, minhas mais sinceras congratulações ao melangé de filosofia, humor e vinho. A ousadia de fazerem feijões diferentes do da sua mãe me deixou rindo até agora… hehe. Ótimo!!
By the way, sou um rabiscador amador, se quiser me dar a honra de sua presença, posto na Enoteca unas cositas…
http://www.enoteca.com.br/index.php?id=29327
Essa foi a última.
Abraços
ELMO