Reflexões do Fundo do Copo – A Uva e Darwin
Por sugestão do dono do blog e-bocalivre, li o texto abaixo do Darwin, aquele mesmo que descobriu e provou que você e eu somos macacos pelados, bípedes, impossibilitados pela natureza a pular de galho em galho como nossos ancestrais. O cara meteu a mão em quase tudo que se movia e em quase tudo que não se movia. Estava adiante do seu tempo em muitos campos de estudo, incluindo ai nossa adorada e idolatrada uva.
Traduzi, mal e porcamente, o artigo que se segue e que foi publicado no referido blog, e ele está aqui porque achei que havia nele interesse acumulado para todos aqueles que se dedicam à prática de clicar neste “Falando de Vinhos”. Não liguem não se ele não fala muito dos vinhos que você achou em sua última viagem á California, porque foi escrito em 1868, quando o Robert Parker ainda não tinha nascido para dar nota, certificar e aconselhar a abertura das garrafas que fazem parte de nossas adegas.
Achei de grande interesse porque sempre fiquei com a pulga atrás da orelha, biólogo que não sou nem serei, de onde vem esta tal variedade de cepas egressas da vitivinifera, que sempre nos dizem, é muito mais legal, é muito melhor e superior que a outra tal, sua irmã Caim, a uva americana, que no máximo serve de uva de mesa (de sobremesa?). Como é que Cabernet é Cabernet e não é Shiraz? Vamos ver porquê e como:
A vinha (Vitis vinifera).— A versão mais aceita pelos estudiosos sobre a origem da uvas européias é que descendem de uma única espécie, que se encontra viva e cresce selvagem na Ásia Oriental, que tem sua origem na Era do Bronze na Itália e que foi recentemente encontrada em forma fóssil em um depósito de turfa no sul da França. Mas certos indícios levam os estudiosos a contestar esta paternidade única de todas as nossas variedades cultivadas. A semente da dúvida está nas características mutantes da videira, capaz de variar geneticamente por caminhos desconhecidos, apesar de reproduzir fundamentalmente suas propriedades através das sementes. E como veio sendo cultivada desde a mais remota antiguidade, ganhando novas variedades por onde passa, parece improvável ter apenas uma origem. Além do que, a tese da multiplicidade tem fundamento particular nas pesquisas de campo feitas por Clemente, que encontrou várias formas semi-selvagens numa floresta da Espanha.
Podemos facilmente inferir que a vinha é uma planta que varia muito quando propagada pela semente devido à incrível variedade de formas adquiridas por ela, documentadas desde eras remotas. Novas variedades são produzidas todo ano, como exemplifica bem a variedade dourada, criada recentemente na Inglaterra, e que nasceu de uma outra preta sem ter havido qualquer cruzamento. Van Mons produziu uma grande variedade a partir de sementes de uma única vinha, que tinha sido isolada de todas as outras, inviabilizando – ao menos por uma geração – qualquer cruzamento. E as suas mudas apresentaram “les analogues de toutes lees sortes”, diferenciando-se em quase todos os caracteres, seja na fruta, seja em sua folhagem.
As variedades cultivadas são extremamente numerosas; Count Odart acha possível que existam em todo o mundo 700 ou 800, talvez até 1.000 variedades, mas sequer um terço destes tem qualquer valor. No catálogo de frutas da Horticulture Gardens of London, publicado em 1842, foram enumeradas 99 variedades. Onde quer que haja plantio de vinha, apareceram novas variedades; Pallas descreve 24 na Criméia, enquanto que Burnes menciona 10 em Cabul. A classificação das variedades tem deixado perplexos muitos escritores e Count Odart opta por um sistema geográfico; mas não entrarei neste particular, e nem menos nas enormes diferenças existentes entre as variedades. Apenas para mostrar quanto é diversificado o desenvolvimento desta planta, pretendo especificar algumas particularidades expressivas, todas provenientes do respeitado trabalho de Odart.
Simon classificou as uvas em dois grandes grupos, as de folhas rugosas e as de folhas lisas, mas ele mesmo admite que ao menos na variedade Rebazo, as folhas são tanto rugosas quanto lisas; Odart sustenta que algumas variedades têm nervuras não encontradas em outras plantas, enquanto que outras têm folhas rugosas quando jovens e envelhecem lisas. A Pedro-Ximenes tem como característica particular amarelar ao menos as nervuras de suas folhas no processo de amadurecimento, quando não deixa pintado de amarelo toda superfície da folha. A Barbera D’Asti é reconhecível por várias características; entre outras, “”por algumas das folhas, e sempre as dos ramos mais baixos, que se tornam repentinamente de uma cor vermelho escuro”.
Muitos autores classificam as uvas a partir do formato do bago, redondo ou oval; Odart admite o valor desta divisão, mas aponta para a Macabeo, que muitas vezes produz bagos pequenos e redondos e, ao mesmo tempo, bagos ovalados e grandes na mesma planta. Algumas, têm uma característica tão marcante que as distingue, como é o caso da Nebbiolo que “apresenta uma ligeira aderência na polpa que circunda a semente, perceptível quando o bago é cortado na transversal”. Uma uva do Reno é citada por amadurecer bem apenas quando o solo é seco, já que costuma apodrecer quando chove demais na época da colheita; ao contrário de uma variedade originária da Suiça, que só amadurece se houver umidade prolongada. Esta última brota apenas na primavera, mas seu fruto amadurece rápido; há ainda as que se dão bem demais com os efeitos do sol de abril e por isso acabam sofrendo com geadas. Enquanto a variedade Styrian tem talos quebradiços, o que faz os cachos caiam com facilidade – e a vinha citada é particularmente atraente para abelhas e vespas – outras têm galhos extremamente fortes, resistentes ao vento.
Outras tantas características poderiam ser citadas, mas os fatos apresentados são mais do que suficientes para mostrar como são variáveis os pequenos detalhes estruturais e constitucionais da videira. No período da grande doença do vinho na França, determinados grupos de antigas variedades sofreram muito mais do que outras. Entre elas, enquanto a de “Chasselas, tão variado, não teve sequer uma afortunada exceção”, outras sofreram muito menos; a verdadeira Borgonha mais antiga, por acaso, esteve praticamente livre da doença e a Carminat resistiu igualmente ao ataque.
As uvas americanas, que pertencem a espécie diferente, escaparam integralmente da doença na França, o que faz supor que muitas dessas européias que melhor resistiram à doença devem ter adquirido – num nível inferior – as mesmas peculiaridades constitucionais das espécies americanas. (Charles Darwin, Variation of animals and plants under domestication, capitulo X, 1868. Tradução Breno Raigorodsky)
Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.