Reflexões do Fundo do Copo – Em 2010, Conheça com Moderação
Entrei no ano com pensamentos sombrios. Seis horas da manhã de primeiro de Janeiro de 2010 e acordo suado, percebendo que o mundo ficou mais apertado. Levanto da cama num pulo, como se precisasse correr para que as paredes não se fechassem sobre mim. Tive medo de um mal conhecido e identificado, chamado vulgarmente de “especialidade”. Não sei bem como e quanto lutar, nem sei bem contra o que lutar.
Especialidade, diz o dicionário Priberam da Lingua Portuguesa, é “parte de um trabalho ou de uma profissão a que alguém se dedica exclusiva ou particularmente”. Pois não quero me dedicar exclusivamente a nada, mas, apesar disso, ando tendo crises de especialidade! Entrei de cabeça no mundo do vinho. 2009 foi um ano que fiquei o tempo todo pensando no vinho que vou tomar, no vinho que vou descobrir, no vinho que vou recomendar, naquele que devo estudar para melhor explicar numa dessas aulas por ai.
Para isso, deixei de me enfronhar por vários caminhos do conhecimento em troca de visitas regulares pelos sites da Jancis Robinson, Wine Spectator, Gambero Rosso, Revue Du Vin, Decanter, Wine Enthusiast, e alguns outros mais esporádicos como elvino.com da Espanha, um ou outro do Chile e outro da Argentina. Deixei de lado o jornal diário e as revistas semanais, quando priorizei folhear as revistas de vinho que chegaram a mim, como as que são vendidas nas melhores revistarias, e como a italiana Il Sommelier e a lusitana Vinhos de Portugal que me trouxeram; além daquelas que são produzidas no Brasil, exclusivas de vinho ou que mantêm um caderno especial sobre vinho e harmonização. Para completar, participei de boa parte das degustações as quais sou convidado (não são tantas), passei pelos sites e blogs brasileiros que tratam de vinho, troco mensagens sobre o assunto com produtores e outros iguais a mim em detrimento de lançamentos de livros interessantes, de peças de teatro, de concertos de música clássica, de atividades familiares.
Não sou apenas vinho, não sou e não quero ser, mas não sei se conseguirei. Clamo por ser, por continuar sendo política, culinária, cinema, esporte, pai, filho, marido, jogador de sinuca, turista, jogador de papo fora. Mesmo o vinho quando visto tão de perto, ganha uma dimensão que nem sempre é positiva como pode parecer. O vício da informação distorce o paladar, como acaba de me acontecer ao ganhar de presente de fim de ano um vinho Teroldego do Alto Adige numerado, produzido pela Cavit em Cervara, que mais me interessou as qualidades da vinificação que o sabor, pois corri para ver no site como ele era feito, quanto tempo de barrica etc. Depois pesquisei o peso da garrafa o tamanho da rolha e fui ao primeiro gole apenas depois de saber quanto custava na Itália e quanto custaria por aqui, caso fosse importado. Pareço o médico especialista que não quer saber o todo do corpo que analisa e que não se pronuncia sobre o particular antes de ter todos os exames laboratoriais em mão. Como ele, não se permite uma opinião baseada apenas nas sensações, pois as surpresas são indesejadas.
Acho o máximo entender profundamente de algum assunto, mas ir fundo demais e manter esta profundidade acima de tudo, aliena. Não dá para deixar de ler um artigo que sai na Piaui sobre a Marina Silva, não dá para estar por fora dos acontecimentos só porque o vinho ocupou sua vida. A especialidade vicia, isola, faz com que a pessoa se sinta bem só entre seus pares no vício. Ela pode matar e não quero entrar no ano pensando em morrer desta doença.
Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.
Parece que hoje falou mais alto o filósofo com um brado de alerta colocando o dedo na ferida. Um pouco sombrio para um inicio de ano, mas vero! Como não canso de repetir, há vida para além do vinho e coisas mais importantes. Ser especialista em algo é bom, mas só pensar, falar e viver isso deve ser, no minímo, monótono!
Ótimo e corajoso texto.
Tambem tenho medo do isolamento da especialidade e acho que o pior dos efeitos, é a prepotência do saber em detrimento do prazer.
Desculpa, fico com o segundo.
Equilibrio sempre!
um grande abs!
Alexandre
Caramba! Esse texto parece um Balde de água fria, mas no lugar da água fria tem a realidade!
Adorei!!!!!!!!
Especialidade tambem salva vidas (bombeiros, enfermeiros, medicos, atiradores de elite, etc etc), lanca foguetes a lua, constroi joias raras, desenha um motor sem combustao interna, cria computadores pessoais, cria comidas maravilhosas, projeta tenis de corrida que protegem nossos joelhos ate os 70 anos, faz vinhos maravilhosos, cria comedia, cria filmes, cria livros.
Galileo Galilei, Da Vinci, Laurel & Hardy, Einstein, Newton, Sabin, Zerbini, Schopenhauer, Pele, McCartney & Lennon, Beethoven, Bach, Caruso, Rommel……
O especialista tambem pode ser um heroi e nao chato ou um chateado.
Ao Clemente, ao Alexandre e ao Ricardo Brito, respondo com a satisfação de quem foi compreendido em seu propósito de alerta. Ao Plow King, agradeço a reflexão, pois é para isso mesmo que se escreve o que passa pela cabeça – criar uma norma de conduta, consolidar determinada posição.
Muitos especialistas no sentido usado no artigo foram úteis a humanidade por terem se dedicado profundamente a um só assunto. O que não impede que a maioria deles tenha sido medíocre em termos de humanidade, socialmente desprezíveis, muitos deles voltados para ambições e pretensões de um egoísmo indefensável. Evidentemente, não falo apenas do Romel, porque aí teria sido bater em bêbado deitado na sarjeta ou tirar doce de criança de menos de dois anos de idade…Especialistas como o Picassso, com a mente aberta para se recriar dentro de sua especialidade? Especialista como Marx (Karl), um símbolo de estudo e dedicação à causa dos oprimidos? Mesmo assim, como tantos outros, incluindo Einstein, agiram pessimamente com suas mulheres, desprezaram as pessoas que os rodeavam… Não sei não.
Breno, se voce ler (ja leu varias, claro) as boas biografias de grandes pessoas (ok, especialistas aqui para nos) voce vera que muitos na vida familiar foram uns infelizes como fizeram as pessoas infelizes. He muito dificil ser ”grande” a luz da historia fora de casa e na intimidade tambem. Eu, que sou mediocre, fico com a sua opcao para esse ano. E que meus amigos e sobrinhos sejam contentes com minhas atitudes, palavras, filosofias…..
Fico contente que tenha entendido o meu ponto. Eu entendi lo tuyo. Manda mais artigos que nos facam refletir. De vinhos e uvas ja temos o suficiente no dia a dia!
Plow King, você é uma pessoa com uma ótima cabeça, não tenho dúvidas. Escrevo sempre sobre vinho, mas costumava escrever mais sobre turismo, sobre gastronomia, sobre novidades da cidade. Faço parte de um grupo de pesquisadores de peixe no Anhembi Morumbi. Sabe como é, receitas gastronômicas com os peixes da costa brasileira e dos rios que possam ser aproveitados pelos chefs, mas principalmente pelas indústrias alimentícias. escrevo também sobre ambientalismo e quero escrever um livro de auto-ajuda pelo esporte. Ou seja, o vinho tomou uma importância maior do que devia, mas jamais se tornará uma coisa menor…