Reflexões do Fundo do Copo – Os Mal Amados
Mais um delicioso texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Coluna do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias.
Suspeito ter uma queda pelos mal amados em geral. Gosto do peixe diabo, da passarinha – um órgão bovino meio que desprezado – gosto de jiló… Só falta agora dizer que gosto de Beaujolais!
No início do século, 7 anos atrás, Miolo e Cave de Pedra faziam Gamay que poderiam ser considerados de boa qualidade, com tipicidade no olhar e no nariz, muito agradáveis na boca. Por que será que os projetos com esta uva não se multiplicaram? Ingenuidade minha, por um momento pensei que ela seria a nossa Malbec, a nossa Tannat, o nosso ícone do futuro, nossa bandeira marqueteira no mercado internacional.
Assim como toda a torcida do Flamengo, na época, eu não apostaria um tostão na produção de grandes vinhos tintos feitos no Brasil, porque ainda pareciam eternas as dificuldades climáticas que insistiam em aguar as uvas na hora da colheita, assim como parecia eterna a baixa tecnologia empregada e o solo pouco conhecido. O todo produtivo, em suma, inibia grandes investimentos no quesito. Aqueles Gamay me fizeram esquecer as dificuldades e pensar grande, foram incentivos mais poderosos do que os Lote 43 da Miolo, o Don Laurindo Cabernet Sauvignon e os outros Valdugas feitos de uva internacional, porque desses havia uma pá de rótulos chilenos e argentinos para comparar e a produção nacional mal conseguia se equiparar a vinhos que chegavam ao mercado muito mais baratos.
Além disso, Gamay seria uma ótima alternativa para o consumo interno, para quem vive num país tropical e que resiste fortemente a migrar do consumo de outras bebidas para o vinho. Distante daquele tempo, o vinho tinto brasileiro vive um momento de afirmação internacional e está direcionado para outras cepas que não a Gamay. Parece se preocupar muito mais com aquelas mais aceitas pelo mercado, tendo como retribuição grande aceitação dos enófilos e sommeliers em todos os concursos internacionais em que participa, conquistando espaços importantes apesar de ainda conviver com forte desconfiança sobre sua capacidade. Argenta, Boscato, Cordilheira de Sant’Ana, Angheben, Villa Francioni, R.A.R. e Familia Bettù, Lydio Carraro entre outros, estão se afirmando com seus Merlot e Cabernet Sauvignon, além de uvas pouco conhecidas entre o consumidor brasileiro. O Millèsime Cabernet Sauvignon da Aurora, o Storia da Valduga, os reservas Merlot e Cabernet Sauvignon da Casa Miolo, superam as barreiras de qualidade que pareciam intransponíveis para os tintos nacionais.
É evidente que nestes 7 anos o vinho tinto viveu uma surpreendente evolução, os capitalistas de outras áreas decidiram investir no negócio, as plantações se deram de modo muito mais objetivo, consolidando outros centros de produção vitivinícola, muito além do Vale do Vinhedo, o que não quer dizer que este não venha dando fortes sinais de vigor. Gamay ou outras uvas que podem render vinhos com as características que defendi ficaram para trás nos esforços das vinícolas, até onde vai minha limitada informação, exceção feita à Pinot Noir que continua sendo pesquisada por conta de sua presença em espumantes e que produz vinhos de qualidade como o recente e muito bem vindo Blanc de Noir da Aurora ou o quase secreto trabalho do Maurício Ribeiro, que vem sendo realizado em Flores da Cunha.
Com Gamay produz-se uma categoria de vinho extremamente gastronômico, feita para ser consumido a uma temperatura abaixo dos 16ºC. Vinhos bons e ruins, alguns dos quais excepcionais como os Borgonhas, outros de qualidade extremamente duvidosa como os Lambruscos. Sem serem excepcionais, mas longe de serem descartáveis, há uma plêiade interminável de vinhos e uvas como as Primitivo da Puglia e de Salento e seus netos californianos, Zinfandel; os Grignolinos piemonteses e os vinhos verdes tintos portugueses, inevitáveis quando se trata de comer bacalhau na terrinha; os vinhos do Loire produzidos com Cabernet Franc e que mereceram da Jancis Robison, no Atlas Mundial do Vinho que escreveu com Hugh Johnson, um comentário indignado contra o desprezo do mercado mundial com vinhos como estes, deliciosos, mas que “pecam” por serem feitos com “menos corpo e vigor”.
O Beaujolais do Bem e do Mal
Gamay é a cepa responsável tanto pelo Beaujolais Nouveau, quanto pelos Beaujolais genéricos, Beaujolais Village e finalmente pelos Cru Beaujolais. O primeiro é o mais conhecido e que lhe deu (má) fama internacional, e que se presta a uma bebemoração festiva global, de São Paulo e São Francisco a Tókio, no mesmo dia. É quase um “não vinho”, feito através de um processo de vinificação estrambólico, a partir de maceração semi-carbônica, onde os cachos inteiros são enfurnados em câmaras lacradas até que se dê a fermentação de parte desta uva, tendo como resultado um meio vinho, meio suco de uva, que, no fim da 2ª Guerra Mundial, fez fama e sucesso entre os sedentos soldados aliados que entraram em Lyon para libertar os franceses do jugo alemão e cair na merecida gandaia por alguns dias, ao menos. Conheceram e aprovaram a beberagem nos bistrôs da cidade libertada e fizeram seu nome internacionalmente.
Se o Vinho Fosse Coxinha
Este é o Beaujolais Nouveau, muito distante em pretensões da denominação “Cru Beaujolais”, a mais nobre da região, restrita à produção de apenas 10 comunas. Ambos são feitos das mesmas uvas, mas, se fossem coxinhas de frango em vez de um vinho, o primeiro seria aquela que você encontra ressecada no bar da esquina, feita de manhã com sobras de frango e consumida só no fim do dia; enquanto que aquele que leva o nome “Cru” é equivalente à coxinha premiada da Regina Preta, por exemplo, feita com os melhores ingredientes, frita e servida crocante e sem excessos de gordura, ainda cálida da primeira e única passagem por uma fonte de calor.
Se o Beaujolais Nouveau merece mesmo pouca consideração, os Beaujolais Village e Cru não têm escapado da ignorância deste mercado que privilegia a potência alcoólica, o ataque adocicado e o tanino da madeira; um mercado que parece ter medo da diversidade. São mal tratados pela mídia especializada, que confunde um determinado paladar com vinho mal feito. Como se, ao contrário, um vinho qualquer oriundo de uma uva nobre e reconhecida por todos como a Cabernet Sauvignon fosse – em si – um atestado de boa qualidade!
Abrir um vinho feito no Brasil, similar ao daqueles cujo rótulo vem registrado com o controle de qualidade regional Cru Beaujolais – Saint Amour, Fleury, Julienás, Chenás, Chiroubles, Morgon, Brouilly, Côtes de Broully e particularmente os Moulin a Vent –, tornou-se um desejo meu de consumo. Queria mesmo encontrar aquela boa complexidade, a presença de taninos sofisticados e até a perspectiva de envelhecimento como a que se dá com os grandes nomes citados neste parágrafo, que crescem dentro da garrafa e encontram seu ápice muitas vezes além dos dez anos! Não são geniais como os grandes da Borgonha, mas, em compensação, custam muitas vezes menos! Coloquei alguma dúvida no seu copo? Você promete dar mais uma chance para o jiló?
Breno, que aula!
Dúvidas no copo, muitas.
Em linguagem que o João Filipe vai entender, ninguém ainda me deu nozes de Beaujolais – nem Noveau nem muito menos Cru. Minha única experiência com Gamay é Miolo, e só. O que quer dizer que não tenho como comparar e poder decidir diferente, porque este, mesmo que bem feito, não me cativou.
Tá, sei, pelo preço que se paga por ele não posso exigir muito. Não que dele eu fugiria, mas não é um vinho que eu queira repetir. E como cacife para os franceses eu não tenho, me restam as dúvidas.
forte abraço gaucho.