Reflexões do Fundo do Copo – o Envelhecimento

breno3Mais um texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias

 

 

Um vinho envelhece com a dignidade que lhe foi dado ter pelo homem e pela natureza, pois umas uvas resultam maior potencial de envelhecimento depois de transformadas em vinho do que outras. Tem vinho que muda totalmente suas características ao viajar, ao ser exposto a temperaturas muito variadas, principalmente acima dos 30ºC. Tem vinho que tem que ter a energia domada pela madeira e envelhecida por alguns anos em garrafa e tem vinho que vai para a garrafa tão jovem que chega à mesa bem nervoso. É este o vinho que precisa oxigenar para melhorar o desempenho. Porque ao contrário do que disse seu sommelier de plantão, oxigenar não é sinônimo de decantar. Oxigenar serve para envelhecer vinhos jovens cujos taninos estão amarrados, ocasionando uma rascante adstringência de banana verde na boca. É disso que basicamente se trata oxigenar o vinho. É para dar melhores condições para que ele atinja o seu ápice na hora do consumo!

decanter-tiltedDecantar é uma coisa que se incorporou ao dicionário do vinho moderno, termo originário da química cujo significado técnico é separar elementos de pesos diferentes por meio da ação gravitacional; é fazer com que eventuais resíduos sólidos em suspensão no ambiente líquido, se reúnam no fundo de um recipiente apropriado, dito decanter, cuja característica primeira é conter uma curvatura abrupta feita para dificultar a movimentação dos resíduos sólidos, e com isso facilitar o despejo do líquido sem a contaminação dos resíduos. O vocábulo deriva do latim medieval dos alquimistas decanthare, composto da raiz de- e canthu, designação para bico de vasilha e pode ter derivado do gr. kanthos — que, além de aro, significa também pote, vaso, ou canto do olho. Assim, decanthare significa despejar a partir do bordo de um vaso, do bico de uma vasilha. (www.amalgamar.com.br/blog/2004/07/glossario-decantar)

No caso do vinho, estes resíduos nada têm de errado em si, a não ser na aparência. Já comprei vinho de mais de R$100,00 por menos de R$15,00, só porque ele apresentava depósito de borra, o Scyri, um scyri-3Nero D’Avola que a Expand costumava importar. O vinho estava ótimo, meus amigos, minhas filhas e eu, acabamos com o estoque dele! Neste caso, o decanter é a ferramenta ideal e sempre que abri um vinho desses usei esta ferramenta. Os restaurantes, incentivados pelos comerciantes, por sua vez incentivados pelos produtores e designers, convencem o coitado do consumidor ignorante de que é imprescindível ter um decanter de cristal para fazer o vinho abrir, através de uma melhor oxigenação. Uma peça cara, que custa o preço de algumas boas garrafas e não traz qualquer resultado objetivo para a grande maioria dos vinhos que se tem na adega!

Faça a experiência – compare em degustação, o vinho que você deixa em taça por uma hora com outros dois: o que você deixa em decanter, digamos metade da garrafa e o que deixa em sua embalagem original, a garrafa, pelo mesmo tempo. O vinho na taça tem muito menor volume e se mistura com o ar presente nela de modo a revelar toda a sua complexidade aromática, além de domar os taninos como o desejado. A diferença a favor da taça será sensível, enquanto que os outros dois vão estar em planos muito próximos. Como os seres humanos, os vinhos também amadurecem conforme suas experiências e compostos que fazem sua essência.

decanter-duckOutra coisa é fazer o vinho passar por um decanter em forma de pato – que a minoria dos modelos que se encontra no mercado – ou jarra de boca larga; larga o suficiente para fazer o mesmo papel da taça de boca larga, só para o todo que será servido. O resto é pura má fé e/ou afetação. Então por que o vinho jovem não é engarrafado depois de um processo de oxigenação precoce? É a micro-oxigenação, a oxigenação induzida, como pretendo ter respondido no artigo anterior que falava sobre a madeira, que vem permitindo vinhos jovens demais terem aceitação positiva do mercado, que renega vinhos como os da velha guarda no velho mundo, que atingem naturalmente a maturidade apenas anos depois da colheita. A micro-oxigenação, por isso mesmo, é a técnica de vinificação responsável pela crescente aceitação do vinho entre pessoas que não costumavam optar por ele.

Mesmo assim, é comum melhorar vinhos jovens demais deixando que ele oxigene. Um vinho é longevo porque foi vinificado de modo a atingir tranquilamente seu ápice, primeiro em barrica de carvalho, depois em garrafa. Mas quanto longevo é o vinho? O Grange 1955 autraliano de uva shiraz apresentou-se em excelentes condições ao ser degustado numa prova vertical em 2005, nos dizeres de um dos presentes no evento, a Jancis Robison. Atribui-se aos grandes vinhos esta capacidade de envelhecer conquistando maior complexidade e caminhando para o seu máximo, antes de decair. É um dos fatores mais importantes para estabelecer o seu valor enquanto mercadoria. Pretende-se que um vinho de mais de US$100,00 envelheça mais e melhor do que um vinho de menor idade.

Enrico Bernardo do restaurante do hotel George V, Paris, eleito o melhor sommelier do mundo no concurso de Atenas de 2004, entende muito mais de vinho do que eu e, provavelmente, muito mais do que você que lê este artigo. Pois ele recomenda deixar um vinho oxigenando em decanter um vinho por 3 meses*!!! Não se tratava de um vinho qualquer, mas o madeira Malvazia Barbeito 1834, que ele considera como um de seus melhores vinhos de todos os tempos. Achei que era um erro ou brincadeira de mau gosto e fui ao capítulo que fala de decantação, para ver se encontrava alguma novidade**. Nada de novo, apenas o bom senso de sempre, o uso técnico de sempre, que pede para oxigenar vinhos cujos taninos ainda estão indomados. Não contente com esta alucinação ele nos afirma sobre o Vega Sicilia Único 1970 – “Decanto este vinho safrado seis horas antes do serviço, para uma degustação entre 16ºC e 18ºC”(destaques meus). Seis horas de decantação para um vinho de 39 anos de idade?

decanter-technoNos dois casos citados, surpreende tratar vinhos vividos como se precisassem respirar. Devem estar beirando a demência senil, um com 173 aninhos e o outro entrando nos quarenta! Por que esta coisa toda, se sabemos – e ele também sabe, tanto que afirma no capítulo citado – que “diante de vinhos maduros, é preciso refletir seriamente antes de decidir se uma decantação é verdadeiramente necessária. Este procedimento, certamente útil para separar sedimentos, pode, em contrapartida, acentuar a oxidação com o risco de achatar o corpo e tornar o néctar irremediavelmente muito velho. Eu acho apropriado frente a um bouquet terciário e a uma estrutura bem concluída, abrir a garrafa algumas horas antes, para extrair os aromas sem prejudicar a estrutura.”

Então, como ficamos, que conta fazemos? Para oxigenar um vinho como o Vega Sicilia Único 1970, seguramente um vinho que deve manter a estrutura bem concluída ou não, ele sugere algo como 6,5 anos por hora… Um vinho com quase 40 anos? O mesmo vinho com apenas a metade da vida, deveria então ficar mais de 12 horas aberto? Uma vez, em Ferrara, perguntei o tempo de oxigenação que o vendedor de vinhos de uma enoteca sugeria para abrir determinado vinho da região, um vinho da costa do Adriático perto de Rimini e o senhor sugeriu 13horas. Quem sabe não era ele um parente próximo do nosso amigo Enrico? Fico sem saber, pois jamais me defrontei com um vinho destes para degustar e sequer me imaginei liderando uma degustação como esta.

Ao falar sobre outro grande vinho espanhol, o Rioja Cirsion Bodegas Roda de 2001 ele nos dá uma pista ao recomendar duas horas decanter-basic-with-stylede decanter** o que parece ser extremamente apropriado, um vinho que deve ter ainda mais 10 ou até 20 anos para crescer. Oxigenação de 2 horas, que ele mesmo recomendará para vinhos italianos como La Poja Allegrini 1999, Chianti Castelo di Ama 1997 e Barbaresco Vigneto Starderi Vürsu La Spinetta 2001, tão potentes e da mesma faixa etária do Cirsion. Então trata-se de algum erro? Certamente não, como ele diz, o vinho “deve imperativamente ser decantado por três meses antes da sua degustação”*** E  com o mesmo tom imperativo, ele ainda recomenda 3 dias de decanter para outro fortificado, o Porto Quinta do Noval Vintage Port Nacional 1963!

Já sei, vou pegar um avião hoje mesmo para Paris e entrevistar o próprio Enrico Bernardo sobre isso. Me aguardem!

Breno Raigorodsky; filósofo, publicitário, sommelier e juiz de vinho internacional FISAR

*Enrico Bernardo – A arte de degustar o vinho pelo melhor sommelier do mundo – Companhia Editora Nacional, SP, 2006, pg136
**Obra citada - pg 183
***Obra citada – pg140
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