Se meter a fazer vinhos orgânicos e biodinâmicos acho que requer uma certa dose de loucura e não me entendam mal! Aquela loucura que todos os gênios que mudaram algo no mundo necessitaram ter, aquela loucura que faz arriscar o que não se deve para encontrar nunca se sabe exatamente o quê. De tomar riscos além do razoável, de ganhar muito ou se perder tudo, enfim algo além do que estamos acostumados a conviver. Junte-se a isso coragem, fé e uma boa dose de romantismo e temos aí um produtor “natureba”. Pessoalmente já provei vinhos orgânicos que não me adicionaram nada, biodinâmicos de que não gostei e nunca compraria assim como já tomei grandes vinhos elaborados da mesma forma. A essência para mim é o vinho ter qualidade e ser palatável. O ser natural, por si, não é nem nunca será, em minha opinião,sinônimo de qualidade.
Este preâmbulo para abrir espaço para a Raquel Santos, nossa porta voz, confreira e sommelier, compartilhar conosco sua opinião sobre alguns vinhos chilenos que são mostra deste estilo de vinhos, os naturais. Fala Raquel
“Quando surgiu a ideia de conhecermos um pouco mais de vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais, causou-nos uma certa estranheza e ao mesmo tempo muita curiosidade. A começar pelo nome de uma das vinícolas: “Cacique Maravilha”! Os piadistas de plantão já encontraram motivos suficientes para que a diversão rolasse à vera!!! Afinal, é para isso que nos encontramos todos os meses, entre outras coisas, é claro!
Íamos conhecer dois produtores chilenos: Manuel Moraga Gutierrez do Cacique Maravilha e Renan Cancino do El Viejo Almacén. Ambos produzem vinhos naturais, de cultivo orgânico e vinificação com a mínima interferência possível. Hoje em dia com toda a evolução tecnológica é considerado por muitos uma grande loucura depender apenas da natureza para se extrair vinho de vinhedos muito antigos, que praticamente já estavam quase extintos, e partir daí fazer um trabalho de risco, onde as vezes pode-se perder todo o ano de trabalho, caso a “natureza” não colabore adequadamente. Sim, é um grande risco que essas pessoas taxadas de loucas correm. Mas acima de tudo, vejo aí uma grande dose coragem.
Por acreditar na cultura ancestral de seus antepassados, eles arriscam para resgatar uma sabedoria que com o tempo foi se perdendo em troca de uma tecnologia mais segura, porém carente de identidade. A agricultura orgânica já é bem assimilada por nós sendo uma opção de alimentação mais saudável, onde não se usa adubação nem pesticidas químicas para afastar as pragas indesejáveis. No caso do vinho, essa prática já vem sendo usada, principalmente no Chile que possui uma situação geográfica privilegiada, onde a estreita porção de terra fica praticamente isolada de um lado pela cordilheira e do outro pelo oceano, impedindo a disseminação de pragas. Já no processo de vinificação, podem ser acrescentados elementos químicos como leveduras que aceleram a fermentação e outros ajustes que interferem no processo final e é justamente aí que entra o resgate de técnicas ancestrais no processo da vinificação e a opção por processos naturais. Se o vinho é o resultado do terroir, mais o tipo de uvas empregadas e a mão do enólogo, neste caso, a função do enólogo é interferir o mínimo possível, deixando a natureza agir de acordo com as intempéries daquele ano. Se foi um ano mais chuvoso ou com altas temperaturas, ou muito frio, isso aparecerá no resultado final do vinho. Nunca haverá uma safra igual a outra e as leveduras serão naturais.Eram vinhos destes que tínhamos pela frente neste encontro.
O resgate da casta País (que na Argentina é conhecida como Criolla) era usada apenas em cortes, e de coadjuvante tornou a principal. Para brindarmos o momento, foi escolhido um espumante chileno feito com essa uva:
Estelado Rosé – elaborado pela espanhola Miguel Torres, que também possui vinhedos no Chile. Muito delicado, refrescante, elegante e possui uma cor linda! Começamos bem e estávamos mais que preparados para as “loucuras” que estavam por vir.
1. Pipeño 2014 – Cacique Maravilha – 100% País – Já chamou a atenção pelo tamanho da garrafa! Um litro.o que, obviamente, todos acharam que seria o tamanho ideal da dose de vinho para 2 pessoas. O nome (Pipeño) significa garrafão e a garrafa de 1l, faz alusão a isso, ou seja, aquele vinho simples que deve ser tomado na companhia de muitas pessoas em momentos de descontração. A uva País é originária das Ilhas Canárias onde é chamada de Listán Prieto, e foi trazida pelos colonizadores espanhóis. De aspecto turvo mostrando que não passa por filtragem. Cor bem clarinha, lembrando um Pinot Noir. Aromas rústicos de terra molhada e notas animais. Com tempo evoluem para frutas vermelhas silvestres e xarope de romã. Um vinho que nem cabem essas descrições técnicas, pois a proposta é de simplicidade e cumpre bem esse papel. Muito agradável e refrescante.
2. Huaso Sauzal 2013 – El Viejo Almacén – 100% País – Como o próprio rótulo diz, vinificado de maneira tradicional, como seus ancestrais o faziam à séculos atrás. Com pouco mais de estrutura que o anterior, onde se percebe uma maior extração das características da casta. Ótima acidez, com as mesmas notas terrosas e selvagens num fundo de frutas silvestres (cerejas), e florais (lavanda).
3. “50/50” Pipeño 2013 – Cacique Maravilha – Um corte meio a meio de Cabernet Sauvignon e País. Com bom corpo, onde a “musculatura” da Cabernet Sauvignon se faz presente. Bem equilibrado, com taninos fininhos e boa acidez. De início o nariz mostra-se um pouco tímido, algo parecido com goma, herbáceo e pouco frutado. Mas com o tempo na taça vai se revelando aos poucos. Aparecem os florais, minerais e a madeira aparece, fazendo a ligação entre as camadas. Muito fresco e aromas de mentol ficam mais evidentes. Surpreendeu!
4. Cacique Maravilha 2013 Blend – Cot (Malbec),País, Cabernet Sauvignon – Aromático, com notas de couro, chocolate e herbáceo (azeite). Na boca os mesmos sabores se confirmam e evoluem para algo mineral. Tem bom corpo, boa acidez e taninos que secam a boca.
5. Huaso Sauzal Garnacha 2012 – El Viejo Almacén – Floral exuberante, com notas de rosas, framboesas e ervas aromáticas. Leve, delicado e equilibrado. Muito fácil de beber e prazeroso.
6. Vigno Carignan 2011 – El Viejo Almacén – A primeira impressão no nariz não agradou muito. Parecia duro e selvagem, quase que inacabado, mas com tempo ele foi arredondando e mostrando aromas mais domesticados. Evolui tanto na boca como no nariz revelando características mais frutadas, defumados, couro e sous-bois.
Essa ânsia em resgatar um modo mais natural de viver, vem como contraponto ao alto nível de desenvolvimento que a história do homem alcançou até agora. Eu acredito que tudo tem seu lado bom e seu lado não tão bom assim… No caso dos vinhos, muitas vezes me perguntam quais são os melhores vinhos que existem. E para mim a resposta mais óbvia é : aquele que mais te encanta! Existem os que amam os mais famosos, os menos, os caros, aqueles nem tanto e aqueles que defendem com todas as garras os naturais e os que os acham uma porcaria! Mas o melhor de tudo é que as possibilidades são imensas e com disposição e vontade, podemos (yes, we can!) escolher o que é bom e eu gosto e vice versa.”
Bem pessoal é isso, semana que vem tem mais! Kanimambo e seguimos nos encontrando por aqui ou por aí, em algum canto desta enorme e surpreendente vinosfera.