Foi no Jornal de Araraquara em 13 de Agosto de 2005, que João Batista Galhardo escreveu esta crônica genial com que me deparei, sem querer, navegando pela rede. Ressalvas feitas aos exageros inerentes a crônicas deste tipo, é por aí mesmo, é muito chato ser um enochato! Delicie-se com o texto.
Crônica
O especialista
Por, João Baptista Galhardo
Especialista é todo aquele que possui habilidades, conhecimentos especiais ou extraordinários sobre determinada prática. Fui convidado pelo Barbosa para tomar vinho numa requintada cantina. Ele convidara, também, o Beto e o Nando que não víamos há muito tempo. O Nando reside em São Paulo e uma vez por ano vem visitar parentes e amigos. Cheguei primeiro. Ocupei uma mesa para quatro pessoas. Pedi pão, salame e queijo cortados e uma porção de sardela. Quando já estava comendo pão com sardela chegaram os três. Foi Nando quem escolheu o vinho. Caro. Veio o garçom e abriu a garrafa. Entregou-me a rolha, quase esfregando no meu nariz. Não sei porque, também não perguntei para que servia. Para não correr o risco de uma resposta malcriada.
O Nando falou: “pelo seu cheiro e manchas ao seu redor, sabe-se pela rolha o estado do vinho para o consumo”. Percebi que o Nando, que na mocidade chamávamos de Fer, especializara-se em vinho. Mandou trocar de copos várias vezes até aceitar taças brancas bojudas e de cristal fino. Peguei a garrafa para me servir e ele gritou: “não faça isso”. Confesso que levei um susto, com aumento de batimentos cardíacos. Ele acrescentou: “você não sabe o que é aeração? O vinho tem que respirar para se acostumar com o ar ambiente”. Tentei de novo pegar a garrafa e nova carraspana do Nando: “limpe os lábios e dentes com miolo de pão para tirar o gosto da sardella que você comeu”. Obedeci. Peguei a garrafa para me servir e nova advertência: “deixe a boca secar. Não tome antes de diminuir a salivação para não estragar o bouquet do vinho”. Tive vontade de mastigar uns dois guardanapos de papel. Mas fiquei na minha.
Já estava me sentindo verdadeiro idiota pela minha ignorância no assunto. O Nando perguntou ao garçom se não havia no recinto uma cuspideira: “todo enólogo que se preza, a primeira dose é cuspida para sentir se o retrogosto da bebida é adorável e duradouro”. Intervi e parece que não agradei: vocês não têm um penico para colocar ao lado dele? O garçom fez que não ouviu. E o Nando retomou a palavra: “cuspideira de enólogo é de papelão”. Num ritual cerimonioso ele colocou um pouco de vinho na sua taça. Balançou a bebida em círculos. Cheirou com as duas narinas. Depois com uma só. Deu-me a impressão de que iria beber pelo nariz. Colocou na boca sem tirar o órgão do olfato de dentro do copo. Mastigou a bebida como se estivesse comendo pamonha. Bochechou. Gargarejou e disse: “trata-se de um vinho jovem, violento, agressivo, e de personalidade marcante. De perfeito equilíbrio e harmonia entre os ácidos, álcool, fruta e tanino. Isto é o que se chama vinho feito por estilista, por artista. Verdadeiro vinho de alfaiataria. De perfeita equivalência entre custo e benefício”. Eu não sabia que para tomar vinho tinha que aprender economia. A conversa já estava um saco e o Nando continuou: “olha as lágrimas que escorrem nas paredes do copo. Perfeita evaporação. É um vinho com grande parte de merlot e pequena de sangiovese. Para acompanhar carne vermelha. De preferência paleta de cordeiro ao molho leve de hortelã “.
Eu ainda não tinha dado um beiço na bebida. Como amante de coisas simples, eu estava zonzo sem ter bebido nada. Não sabia se degustava o salame, comia o vinho e bebia o pão ou se fazia um bochecho com a sardela, bebia a água e molhava o pão no vinho. Para complicar eles pediram charutos. Quatro. Mas eu não fumo, apressei em dizer. “Não…você tem que fumar. Bebedor de vinho fuma charuto”. Nesse instante tive uma idéia. Por baixo da mesa acionei a campainha do meu celular. Simulei um atendimento e informei: “é minha mulher. Tenho de ir embora”. Deixei minha parte da conta. Comprei uma garrafa do mesmo vinho e fui para casa.
Descalço, sem camisa e de bermuda tirei a rolha. Convidei minha mulher para beber comigo. – “O que você quer comer”, perguntou ela. Paleta de cordeiro com molho de hortelã, nem pensar? Ela disse “você está delirando, vou fazer omelete com aqueles ovos de gansa, bacon, queijo e salsinha”. Então pedi: “faça bem mole, para comer com pão”. Antes, porém, fechei as janelas, as portas e as cortinas para que ninguém nos visse tomando aquele vinho com omelete. E se eles resolvessem passar pela minha casa? Imagina o que diria o enófilo-enólogo Nando! Deus me livre. Enquanto bebíamos disse que se tratava de um vinho agressivo e de personalidade forte. Com olhos arregalados ela perguntou: – você tem medido a sua pressão? Não respondi e continuei: olhe para o copo. De lado é vermelho. Olhando de cima para baixo ele escurece, mas dá para perceber no fundo da taça as frutas vermelhas, principalmente amora, cereja e pitanga. Ela ficou mais assustada. Eu estava repetindo coisas que ouvi do Nando, mas quando lhe disse que se tratava de um vinho feito por alfaiate, ela quase se afogou. Colocou o copo na mesa e me advertiu: “pare de beber que você já está é troncho da cabeça”.