Mais um texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias
Em pleno século XXI, quando os controles do Estado sobre o mercado foram derrotados em quase todas as frentes desde que a senhora de ferro Margareth Tatcher assumiu o título de Primeiro Ministro do governo inglês, o governo francês não pára de regular, de decretar, de estabelecer parâmetros de funcionamento. O neoliberalismo parece não atingir com força a atividade agrícola francesa, o vinho em particular, o que talvez, fora de tempo de lugar, querem os brasileiros imitar.
Aqui aproveitamos para refletir sobre esta nova denominação, a “Fronton”, regulamentada em meados do ano de 2005, seguindo uma tradição infindável de decretos sobre a produção e negociação do vinho que vem desde a Revolução Francesa, retomada pelo período napoleônico e por todos os governos que por lá passaram. Entre as duas grandes guerras, muita coisa foi regulamentada, entre elas, uvas, vinificações, denominações, limites geográficos e, inclusive as garrafas que poderiam ser usadas para acondicionar determinados vinhos*
1.(Litro duplo; 2. Litro; 3. Meio-litro; 4. Garrafa Bordeaux; 5. Fillette d’Anjou; 6. Demi-Anjou; 7. Anjou; 8. Maconnaise; 9.Champagne; 10. Bourgogne; 11.Saint-Galmier; 12.Frasco de Chianti; 13.Garrafa flût da Alsácia)
De fato a maioria destes formatos de vidro consagrados por decreto, tornaram-se referências de tipicidade facilmente reconhecíveis pelo consumidor. Por conta disso, é possível saber diferenciar um Bordeaux de um Borgonha, antes mesmo de identificar rótulos e era esta a intenção aparente deste decreto. Regulamentar para defender o que está consagrado, não regulamentar para defender novos produtos de mercado. É por isso que países como a Austrália pouco ou nada regulamentam, enquanto a França e a Itália não param de regulamentar!
É bom lembrar, para que esta reflexão não seja torta no olhar e exageradamente desinformada no conteúdo, que a França é o único país moderno cuja reforma agrária – conseqüência e causa da Revolução de 1789 – se deu por todo o território e que mantém a micro-cultura familiar como modelo mais importante de produção. Pequeno produtor, combativo produtor, reunido em cooperativas que socializam os custos de maquinaria, das avaliações técnicas e dos insumos, e que defendem o seu modelo de produção, como pudemos bem ver no filme Mondovino. Produtor independente, livre de grandes compromissos com exportação, quase sempre voltado para o mercado interno, mantém um lobby constante de pressão sobre o ministério da agricultura e da pesca, assim como sobre o da economia, finanças e indústria. Eventualmente este produtor familiar tem suas fileiras engrossadas pelos grandes da agricultura e do negócio do luxo como a gigante LVMH que detém monopólios vinícolas na França e no resto do mundo. Mas o interesse regulamentador é mais dos pequenos.
O lado bom desta pressão é manter abertas as portas do mercado para o produto que valoriza a uva e a vinificação autóctone. Sem ela, imagino que muitas cepas secundárias teriam desaparecido por conta da lógica do mercado. O lado ruim é que eventualmente impede diversificações positivas, como ficou patente na célebre disputa italiana entre o Antinori e os produtores da denominação toscana “Chianti Classico”, onde quem venceu perdeu e quem perdeu venceu! Pois Antinori não conseguiu derrubar a regulamentação e, por conta da forte presença de uvas internacionais, não pode fazer do seu Tignanello um chianti clássico, como queria, pois o seu produto colocava em risco a tipicidade do vinho do galo vermelho, um vinho onde a uva sangiovese reina. Virou IGT, denominação pobre, muito abaixo da DOC Chianti Classico, mas virou um ícone reconhecido no mundo inteiro, mais aplaudido do que qualquer vinho clássico da região.
Aqui, no caso da “Fronton”, o lado bom se mostra, pois Fronton, de acordo com o decreto AGRP0501416D, define que só pode beneficiar-se da “Appellation d’Origine Contrôlée” o vinho produzido nas comunas em torno de Fronton, a saber Bouloc, Saint-Rustice, Vacquier, Villaudric etc. frutos de plantas plantadas, da Negrette N, com um mínimo de presença em 50% e um máximo de 70%. A complentariedade se dará de modo decrescente – até 2019 – das uvas gamay, mérille, cisaut, mauzac, que não podem, todas juntas, representar mais de 15% do todo e que terão sua importância diminuída até 5%. Finalmente, o decreto garante a presença crescente da Syrah e da Cot, até um máximo de 25%. E, talvez a razão de ser do decreto, a presença máxima dos mesmos 25% das uvas cabernet – nas vertentes sauvignon e franc – misturadas no todo! Ou seja, o vinho desta denominação Fronton sempre será o resultado da mistura de ao menos três uvas, tendo sempre a presença constante majoritária da uva Negrette. O decreto segue outros tantos, determinando como pode ser plantado, qual o número de pés que se pode plantar por hectare (4000) etc..
O Vale do Vinhedo, tardiamente e certamente fora do lugar, cria o seu conceito de terroir, quando este não cabe mais, pois se existiu, já foi, deixou de ser. Na verdade foi, de fato, quando se dedicava prioritariamente ao plantio e colheita das uvas americanas, Isabel, Bordô e outras de enxerto próprio. Da sua produção de mais de 3 milhões de hectolitros/ano, apenas 100mil destes são vinho tinto fino. A criação destas certificações é discutível e comercialmente têm seus fortes argumentos. As cachaças de Salinas, MG, aproveitam-se melhor da fama atingida por algumas de suas marcas mais conhecidas, em particular da ex-Havana, agora Anísio Santiago. Do mesmo modo, o reconhecimento de qualidade de produtos de pequena produção dentro dos limites do Vale do Vinhedo pode estar beneficiando todos que conseguem o certificado desta limitação regional. No entanto, além de limitar experimentos saudáveis, limites comerciais parecem sempre favorecer cartéis, como mostra a tradição brasileira na área alimentícia em várias frentes, dos embutidos de carne – impedidos de vender seus produtos além de uma distância determinada – aos laticínios não pasteurizados, igualmente impedidos de circular por alegadas razões sanitárias, não comprovadas, pelo contrário, a ver o histórico de seus similares em tantos outros lugares do mundo.
A pergunta que fica é: a quem interessa as denominações de origem controlada? Que benefícios trará ao produtor e, principalmente, ao consumidor?
Breno Raigorodsky, 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR.
*Imagem extraída do livro Larrousse Gastronomie, apresentando as garrafas autorizadas pelo governo francês, em 1938. Imagem reproduzida e enviada a mim pelo amigo Victor Nosek.